Time’s Up – O senso comum só se incomoda com o assédio sazonalmente

Na semana passada, os amantes de cinema acompanharam a repercussão da 75ª edição do Globo de Ouro, cuja cerimônia aconteceu no dia 7 de janeiro. Além das matérias e burburinho usuais que esse tipo de evento desperta na imprensa e no público – tanto pelas causas que levam à realização de uma premiação desse tamanho, quanto por seu caráter de gala –, a divulgação da campanha Time’s Up, idealizada por artistas de Hollywood e contra o assédio sexual em locais de trabalho, acabou despertando também algumas polêmicas.

A CARTA NO LE MONDE

No último dia 9, dois dias após o Globo de Ouro, cem artistas e intelectuais francesas assinaram uma carta no jornal Le Monde, criticando o suposto “excesso de zelo” dirigido à questão do assédio durante a cerimônia. Entre as assinantes, está a atriz Catherine Deneuve (A Bela da Tarde / Os Guarda-Chuvas do Amor), de 74 anos, uma das personalidades francesas mais conhecidas no mundo. No manifesto, está evidenciado um dos motivos pelos quais tantas vítimas de abusos sexuais de diversos lugares do globo não denunciam os chamados “predadores sexuais“: a dificuldade do senso comum em aceitar a diferença entre assédio e paquera. Vamos, portanto, deixar clara, aqui, tal diferença.

Segundo o dicionário Aurélio, assédio é o “ato ou efeito de assediar; (…) comportamento desagradável ou incômodo a que alguém é sujeito repetidamente; (…)”, enquanto que assédio sexual é tido como o “conjunto de atos ou ditos com intenções sexuais, geralmente levado a cabo por alguém que se encontra em posição hierárquica, social, econômica, etc.”. Sendo assim, quando uma pessoa se sente incomodada com as investidas sexuais de uma outra, cujas intenções e ações foram desmedidas – e com o propósito único de estabelecer certo domínio sobre o corpo da primeira –, o incômodo em questão é consequência direta de um ato assedioso.

(Abaixo, vídeo divulgado na página pessoal do Instagram da atriz Brie Larson, a respeito da campanha Time’s Up no Globo de Ouro):

Agora, ainda segundo o Aurélio, paquera significa “tentar fazer conquista amorosa”. Logo, a distinção entre paquera e assédio é, justamente, o consentimento. Perguntar o nome de um desconhecido em uma festa, por exemplo, não denota assédio, visto que tal ato não pressupõe qualquer intenção desmedida ou abusiva. Já, abordar alguém através de uma “passada de mão” – expressão que, aqui, significa “encostar qualquer parte do seu corpo no corpo de outra pessoa, propositadamente e sem sua permissão” –, com certeza, é configurado como assédio. Gritar para uma mulher desconhecida na rua que ela é “linda”, “gostosa”, “maravilhosa”, “tesuda”, “feia”, “gorda”, “muito magra”, “mal amada”, ou dirigir qualquer outra palavra ou frase gratuitamente a alguém, também é assédio. Aproximação e comportamento abusivo são coisas completamente diferentes, e todas as pessoas têm o dever de saber diferenciá-las.

Voltando ao artigo do Le Monde, o título da carta assinada é “Nós defendemos a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”. Liberdade de importunar (sic). Primeiramente, e para deixar claro, ninguém possui a liberdade de importunar quem quer que seja. A importunação nunca deve ser motivo de aproximação entre duas ou mais pessoas. Em segundo lugar, precisamos falar sobre o movimento pró-liberdade sexual dos anos 60 – ocorrido em países ocidentais como França, EUA e Brasil.

A LIBERDADE SEXUAL DOS ANOS 60

Naquela época, o moralismo cristão viu-se no centro de uma grande transformação social contemporânea, ao ter de lidar com o ativismo de jovens e feministas a favor do direito de fazer sexo quando e com quem bem entendessem. A partir daí, a ideia de “Paz e Amor” repercutiu na imprensa e na cultura pop, atingindo diferentes faixas etárias e sociais. Então, quando uma mulher como Catherine Deneuve, que protagonizou um clássico do cinema em plenos anos 60 e que é considerada um dos maiores sexy simbols franceses de todos os tempos, participa de uma campanha “pró-importunação” das mulheres, afirmando que as denúncias dos últimos tempos “perderam o controle” e que “(…) tentar seduzir alguém – mesmo de forma insistente ou desajeitada não é (estupro)”, é preciso frisar a confusão na interpretação dos fatos.

Pois a defesa da liberdade sexual dos anos 60 não foi pelo “direito de fazer o que quiser com os outros”, mas sim por se relacionar amorosa e sexualmente com total consentimento, respeitando a vontade de todos os, e somente daqueles, envolvidos no relacionamento em questão.

“UM GRANDE FUNERAL”, SEGUNDO DANUZA LEÃO

Seguindo a linha do pensamento conservador das cem assinantes da carta publicada, a escritora Danuza Leão (84), irmã da cantora Nara Leão e ex-esposa do jornalista Samuel Wainer, teve um depoimento seu publicado em o Globo, dando ênfase à ideia de que denunciar o assédio sexual é “uma moda”. Referindo-se ao Globo de Ouro, Danuza proferiu frases como “(…) aquelas mulheres (que foram à cerimônia de preto) foram muito pouco paqueradas e voltaram sozinhas para casa”; “é ótimo passar em frente a uma obra e receber um elogio”, e “acho que toda mulher deveria ser assediada pelo menos três vezes por semana para ser feliz”. É evidente que a escritora brasileira compartilha da confusão das francesas mencionadas neste artigo.

O Globo de Ouro nada teve a ver com “um grande funeral”, como Danuza comparou. As “mulheres de preto” representaram todo um movimento que preza por justiça, pelo acolhimento de vítimas e pela reparação de vidas destruídas. Um funeral é uma cerimônia que lamenta a morte de alguém e que homenageia toda uma vida. Já, a cerimônia do Globo de Ouro serviu principalmente para a divulgação de uma campanha que diz, literalmente, “chega, o tempo (de assediar) acabou!”. Como lamentar tal iniciativa?

Os abusos sexuais, sim, que sejam lamentados. Que os tantos predadores sejam denunciados. E que a Time’s Up sirva de exemplo a todas as instâncias de trabalho e a quaisquer estruturas sociais existentes hoje e futuramente. Não tolerar a intolerância é a principal briga comprada pela geração vigente, mas parece que expor tantos crimes sexuais – desfavorecendo grupos patriarcais da alta sociedade – não é algo muito relevante para alguns influenciadores populares e detentores do poder da imprensa. Afinal, já tivemos amostras o suficiente de que o senso comum só se incomoda com o problema do assédio sexual sazonalmente – e, em geral, não da forma com a qual gostaríamos.

Atrizes e ativistas no Globo de Ouro 2018. Imagem: Kevin Tachman para a revista InStyle

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