Era uma vez um México árido e miserável, perdido no tempo e dominado pelas milícias. Nesse México de poderes paralelos, tomado pela violência do patriarcado e pela selvageria de uma economia quebrada, mulheres desaparecem gradativamente, crianças podem ser perseguidas, aprisionadas, mutiladas e mortas e a população diminui. Esse é o ambiente nada encantado de Compra-me um Revólver, conto de Julio Hernández Cordón que tem uma protagonista com nome de super-herói, e não de princesa.
Huck, interpretada vigorosamente pela pequena Matilde Hernández, vive com o pai (Rogelio Sosa) em um campo de beisebol abandonado, onde traficantes se reúnem para jogar e dar festas. O pai trabalha cuidando do campo para a milícia em troca de alguma proteção e de poder morar no trailer que fica nos fundos do lugar, enquanto Huck passa os dias acorrentada para não ser sequestrada por gangues inimigas, sempre usando uma máscara do Incrível Hulk para se passar por garoto.
A jovem protagonista tem apenas três amigos de sua idade. São crianças abandonadas, pobres e transgressoras. É somente na companhia desses garotos e do pai que a personagem consegue vivenciar algo de lúdico em uma infância cerceada pela barbárie das disputas de poder em um país destroçado.
Não sabemos ao certo o que aconteceu ao resto da família de Huck. Sabemos apenas que o pai parece já ter perdido muito e que agora afoga o próprio desespero em pequenas doses de drogas esquecidas pelos traficantes, ao mesmo tempo que dá o máximo de si para poupar a filha da truculência da realidade e lhe garantir o mínimo de segurança, afeto e conforto. A relação de parceria, cuidado e ternura estabelecida entre os dois, além de ser absolutamente contrastante ao ambiente desumano que os rodeia, é o grande mérito do filme.
O desenvolvimento de laços tão fortes de afeto nesse lugar onde a única regra é sobreviver por vezes faz do filme de Cordón uma obra cativante; outras vezes, dilacerante. Aliás, a relação pai e filha de Compra-me um Revólver muito nos remete à relação mãe e filha de Projeto Flórida. Os dois filmes trabalham os contrastes entre violência e afeto, o lúdico e vulnerabilidade na infância, subjetividades infantil e adulta, solidão e companheirismo. E ambos o fazem de forma devastadora, mas também singela.
Buscando transpor esses contrastes gerados pelo perfil dos personagens e pelo contexto da narrativa para a imagem, Córdon opta, em pelo menos dois momentos, por representações simbolicamente lúdicas de violência. Em uma das vezes, numa cena de carnificina, o diretor escolhe não representar cadáveres com atores estirados no solo, mas com silhuetas desenhadas em cartolinas. Quando temos uma visão ampla e aérea do cenário, vemos representações quase ingênuas da morte espalhadas pelo território austero desse México desamparado e inóspito.
Apesar de focar mais na construção de cotidiano de Huck e seu pai, o filme também reserva alguns momentos de olhar para os traficantes, funcionários dos chefões dos cartéis. São homens vindos de diferentes lugares – inclusive de outros países -, com diferentes histórias, valores e até identidades de gênero. São pessoas também desesperadas por sobrevivência. Gente que enxergou na violência uma forma de ter, talvez pela primeira e única vez na vida, algum poder.
Compra-me um Revólver funciona como um olhar distópico sobre possibilidades de futuro. No filme, o trato da infância é o que indica quais caminhos a civilização contemporânea percorrerá.
Não é à toa, portanto, que a produção tenha circulado pelas listas de melhores filmes mexicanos de 2018. Além de sua indiscutível qualidade enquanto obra artística, o longa estreia justo em um momento de levante dos movimentos feministas latino-americanos, propondo uma distopia infelizmente não muito inalcançável, na qual um país tomado por milicianos e traficantes é o pior dos mundos para uma garota.
Esse universo da trama dialoga diretamente com questões sobre infância que são fundamentais para discussões a respeito do futuro em toda América Latina. No começo de maio deste ano, a revista Gatopardo publicou a matéria “As crianças pedem um México sem violência”. Nela, dados do Secretariado Executivo do Sistema Nacional de Segurança Pública do México (SESNSP) revelam que só no primeiro trimestre de 2019 foram registrados 285 homicídios de vítimas que tinham de 0 a 17 anos. Isso significa 3.2 homicídios diários.
Graças a políticas públicas equivocadas de combate ao tráfico de drogas, milícias já são forças paralelas poderosas tanto no México quanto em países como o Brasil. Além do mais, no Brasil vem crescendo o número de feminicídios e a idolatria às armas, manifestações de falsas sensações de firmação de masculinidade e acesso ao poder*. Em contextos de guerra urbana, crianças ficam imediatamente vulneráveis e podem ser maltratadas, violentadas, abandonadas e exploradas, mortas por facções criminosas e pelo Estado, enviadas para adoção ilegal ou traficadas para outros países.
O feminicídio infantil também é um fenômeno crescente na América Latina. De acordo com a averiguação de alguns jornais latino-americanos membros do Grupo de Diarios América (GDA), informada no Brasil pelo jornal O Globo, nos últimos seis anos a região registrou mais de 600 casos de assassinatos de meninas latinas – número que pode ser muito maior, já que esses dados são subnotificados. São crimes motivados por misoginia ou por disputas econômicas e de território. São garotas assassinadas por serem garotas. Do total, 157 assassinatos foram cometidos em El Salvador, 140 na Argentina e 89 no México.
Logo, Compra-me um Revólver toca em pontos importantes sobre a negligência com a infância na América Latina, somando-se à safra de ótimos filmes contemporâneos mexicanos comprometidos em contar boas histórias, com arte autoral de qualidade e críticas sociais precisas.
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Trailer:
Ficha técnica
Direção: Julio Hernández Cordón
Duração: 1h24
País: México
Ano: 2019
Elenco: Matilde Hernandez, Ángel Leonel Corral, Fabiana Hernandez, Rogelio Sosa
Gênero: Drama
Distribuição: Pandora Filmes
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