O Nome da Morte e a banalidade do mal brasileira

O Nome da Morte, primeiro trabalho de Marco Pigossi no cinema, estreia hoje no circuito comercial. O filme, dirigido e co-roteirizado por Henrique Goldman, é  livremente inspirado no livro homônimo do jornalista Klester Cavalcanti, que conta a história de Júlio Santana, um matador de aluguel confesso que diz ter matado 492 pessoas ao longo de mais de 20 anos.

Júlio (Marco Pigossi) vivia com a família, humilde e religiosa, no interior do norte do país, sem qualquer tipo de educação ou perspectiva de uma vida melhor. Pensando em mudar seu destino, o jovem aceita ir para a cidade, à convite do tio (André Mattos), para tentar virar policial. Quando chega ao seu novo lar, o rapaz descobre que o tio tem outros planos para ele. Assim, o moço ingênuo do interior acaba envolvido numa rede de corrupção e adota um novo ofício: a pistolagem.

A princípio, o protagonista resiste e reprova a oferta do tio, mas, diante de uma vida de miséria e injustiça social, o dinheiro lhe parece uma boa motivação. A partir daí o personagem de Pigossi passa a matar mulheres a mando de maridos misóginos, indígenas a mando de coronéis e líderes sociais a mando de políticos. Mas matar não é fácil para Júlio. Seus valores e religiosidade vivem em conflito constante com sua “profissão” porque ele não é um serial killer, não mata por prazer.

Júlio Santana (Marco Pigossi) / Divulgação

Júlio é indiscutivelmente uma vítima social, sem esperança, sem autorização para sonhar.  Por outro lado, aceitar ir contra a própria personalidade para matar é uma escolha pessoal. Ele poderia ou não ter aceitado, e aceitou. Por isso, O Nome da Morte é feliz em propor que as figuras do “cidadão de bem” e do “bandido” estejam sempre sobrepostas. Uma face não necessariamente anula a outra. Julio vive duas vidas e carrega consigo, ao mesmo tempo, o que há de bom e o que há de horrível no ser humano.

Quando Maria (Fabiula Nascimento) se casa com Julio, esse tipo de dualidade ganha uma perspectiva feminina importante. A moça, também humilde, vê no casamento a oportunidade de  deixar de trabalhar no boteco do pai. Julio, gentil e carinhoso, surge para ela como uma salvação. O matador de aluguel passa anos fingindo, para a esposa e para o filho, que é policial. Maria acredita que se casou com um homem bom e, mais tarde, tem de enfrentar a realidade. Nesse momento, surgem também todas as facetas de uma mulher que achou que estava “salva”, mas que segue rodando conforme a engrenagem.

Júlio (Marco Pigossi e Maria (Fabiula Nascimento) / Divulgação

Atormentado por sua própria ambiguidade, Julio é a  personificação da banalidade do mal da filósofa alemã Hannah Arendt. Um cidadão, à primeira vista comum, que encontra, numa rede praticamente institucionalizada, espaço para ser perverso. Júlio é, ao mesmo tempo, vítima do sistema e algoz de seus semelhantes.

Durante a coletiva de imprensa do filme, Marco Pigossi fez questão de salientar que pistoleiros não são exclusividade do interior do país. Eles representam o que há de mais sórdido entranhado nas esferas de poder brasileiras porque, não raras vezes, são os empregados de gente poderosa no campo ou na política. O ator ainda aproveitou para perguntar: “Quem matou Marielle? Quem mandou matar?” – Marielle Franco, vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, negra, lésbica e feminista, foi morta a tiros há mais de 140 dias. Acredita-se que sua morte tenha sido encomendada, mas até hoje a investigação policial não trouxe respostas.

O Nome da Morte pode ser considerado como um “filme médio”, daqueles que não alcançam altas bilheterias, mas que o público não considera inacessível. Goldman não economiza em carga dramática, mas também não abandona seu eixo temático e suas aspirações. Entre as cenas de violência e  de convívio familiar do protagonista, números preenchem a tela contabilizando o número de vítimas do pistoleiro até aquele momento. Um recurso simples, mas que funciona para impactar e dar peso à narrativa.

Pigossi, por sua vez, consegue transmitir com maestria a complexidade de um personagem tão difícil. Ele é sereno e amável quando em família, ensinando o filho a se comportar bem, apático quando contratado para matar e intimamente revoltado por estar de alguma maneira aprisionado pelas consequências de suas escolhas e de sua origem.

Julio e o tio policial corrupto (André Mattos) / Divulgação

Fabiula Nascimento também se dedica a transmitir todos os aspectos que dominam a personalidade de Maria em cada momento de sua vida em  família. Apenas com o olhar, a atriz demonstra que, desde a descoberta da real profissão do marido, Maria vive em constante estado de alerta, mesmo quando a família está financeiramente bem de vida.  Para sobreviver, a personagem se aliena – como milhares de brasileiros.

O filme, que conta com uma bela fotografia, belas paisagens e trilha sonora afiada, se permite ainda trabalhar com alguns momentos de alívio cômico, aproveitando os absurdos da desgraça humana para desafogar a tensão das cenas de violência. A estratégia funciona e dá consistência aos sentimentos que o filme quer provocar.

Colocando em xeque o senso comum e simplista de que existem pessoas boas e ruins apenas porque sim, o longa propõe reflexões certeiras ao apontar para a corrupção policial e institucional, ao expor o oportunismo de religiões que funcionam mais como empreendimentos e ao induzir o público a ter certa empatia em relação ao pistoleiro.

O Nome da Morte poderia ser somente mais um filme sobre matadores de aluguel com crise de consciência, mas seu protagonista é baseado num homem que existe. Um homem cuja própria existência denuncia as contradições de um Brasil que ignoramos – ou preferimos ignorar. Daí a importância do registro.

Trailer:

(Fonte: Imagem Filmes/ YouTube)

Ficha técnica

Direção: Henrique Goldman

Duração: 1h38

País: Brasil

Ano: 2018

Elenco: Marco Pigossi, Fabiula Nascimento, André Mattos

Gênero: Drama

Distribuição: Imagem Filmes

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