No início de junho, As Boas Maneiras, novo trabalho da dupla de diretores Juliana Rojas e Marco Dutra, estreou nos cinemas brasileiros sob muitos elogios da crítica especializada. Essa é segunda vez em que Rojas e Dutra dividem direção. Em 2011, os dois estrearam Trabalhar Cansa, longa que aposta no suspense e no sobrenatural para desenvolver alegorias sobre relações de trabalho, aflições da classe média e dinâmicas sociais.
A parceria entre os diretores tem consolidado algo raro no cinema nacional: filmes autorais de gênero. Rojas e Dutra possuem uma assinatura muito própria e original. Juntos, eles desbravam o universo do terror, do suspense e da fantasia com a audácia de quem não abre mão de contar histórias atreladas ao contexto de seu país de origem.
Trailer de As Boas Maneiras:
(Fonte: Imovision/ YouTube)
Apesar da relevância das obras da dupla para o cenário do cinema brasileiro contemporâneo, As Boas Maneiras teve distribuição limitada e chegou ao circuito comercial em pouquíssimas salas. Por isso, listamos alguns motivos para te incentivar a não deixar passar essa produção tão especial:
1.PROTAGONISMO FEMININO
A trama de As Boas Maneiras, além de codirigida e roteirizada por uma mulher, conta com duas protagonistas: Clara (Isabél Zuaa) e Ana (Marjorie Estiano). Clara é uma mulher negra, pobre e periférica. Suas vivências entram em conflito quando ela é contratada como babá por Ana, uma jovem mulher branca, de classe média alta, grávida e solitária.
Em um primeiro momento, o filme nos propõe acompanhar o desenvolvimento da relação dessas duas mulheres de realidades tão conflitantes. De um lado, Ana enfrenta uma gravidez difícil e precisa da ajuda de uma funcionária, mas abusa de sua posição de privilégio ao exigir que a contratada também limpe, cozinhe e carregue sacolas. Do outro, Clara, por precisar de dinheiro e por notar a condição de fragilidade da patroa, aceita a proposta de emprego e passa a lidar com os comportamentos estranhos de Ana.
A princípio, então, a relação de companheirismo entre mulheres absolutamente diferentes e até mesmo as tensões sociais e pessoais que as envolve são o foco da narrativa. Mais tarde, o filme se aprofunda na atmosfera de terror e fantasia que vinha construindo e abre espaço para temas como a maternidade solo e medo do desconhecido.
2.UM FILME DE GÊNEROS
As Boas Maneiras é um filme ambicioso. Para muita gente, ele pode parecer dividido em duas partes, uma mais focada em comentários sociais e outra no sobrenatural e fantástico. De fato, o longa perpassa por diversos gêneros, mas transita bem entre eles e consegue unidade. Já a impressão de “dois filmes em um” pode ser gerada pela nossa falta de costume com filmes de gênero(s).
Na chamada primeira parte, os diretores – também roteiristas – se preocuparam em estabelecer a natureza de suas personagens e as origens de conflitos realistas ou sobre-humanos que veremos mais à frente. Assim, é completamente compreensível que o drama e o suspense sejam dominantes nessa fase da narrativa.
Quando o sobrenatural se estabelece – a partir da cena que muda a vida das personagens em uma noite de lua cheia, considerada ponto de virada para a segunda parte – o longa se permite explorar mais gêneros cinematográficos. Aqui entram o horror, a fantasia, a fábula e até mesmo o musical – gênero trabalhado com excelência por Juliana Rojas no longa que dirigiu sozinha em 2014, Sinfonia da Necrópole.
3.TEMÁTICA E ESTÉTICA
Outros dois aspectos que chamam a atenção em As Boas Maneiras são a temática e a estética. A temática porque, ao construir a atmosfera do filme baseada em alegorias de horror, tensões sociais, dramas e relações familiares, aproximando mitologia e realismo com engenhosidade admirável, Rojas e Dutra criam uma narrativa riquíssima, cheia de camadas de entendimento e de interpretações. E essa é uma das características dos trabalhos dos diretores: eles nunca fazem questão de nenhum tipo de didatismo.
A direção de fotografia de Rui Poças também é parte fundamental do que há de extraordinário na concepção da obra e flerta muito com o estilo noir – um noir colorido -, predominando as cores fortes com alto contraste, principalmente nas cenas externas. As cores, sombras, nuvens e luas cheias trabalhadas nas pós-produção ajudam a conceber o clima idealizado pelos realizadores.
Valendo-se justamente dessa estética noir, a direção aproveita para fazer da cidade uma personagem importante, cheia de mistérios e de segregações – com realidades diferentes em cada um dos lados do rio, como mencionado pelas personagens.
Outra opção arrojada da direção foi a de trazer flashbacks através de animações. Escolha que reforça ainda mais a caracterização de conto fantástico de As Boas Maneiras.
Já os efeitos visuais podem não ser os mais verossimilhantes do cinema, mas eles cumprem sua função de endossar o tom “fabulesco” do enredo, ajudando a compor uma ambientação mais “lúdica”.
No fim das contas, ficam os questionamentos: seria esse um filme no qual criaturas não-humanas possuem uma moral da história para transmitir ou trata-se, na verdade, de um filme de terror com monstros? Quem são os monstros que criamos?
*Consulte aqui as sessões disponíveis de As Boas Maneiras
Ficha técnica
Ano: 2018
Duração: 2h16
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Gilda Nomacce, Eduardo Gomes
Gênero: Terror, Fantasia, Drama
Distribuidora: Imovision
País: Brasil, França
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