Frontera Verde: fantasia e suspense policial na Amazônia

Na última sexta-feira (16), a Netflix disponibilizou a primeira temporada de sua terceira série original colombiana. Trata-se de Frontera Verde, codirigida por Ciro Guerra, Laura Mora e Jacques Toulemonde.

A trama é contemporânea e gira em torno do que, a princípio, parece ser uma simples investigação policial em meio à floresta amazônica.  Tudo começa quando a jovem agente Helena (Juana del Rio) é enviada pela polícia da capital à região da fronteira Colômbia-Brasil para investigar o assassinato de quatro missionárias na floresta.

‘Frontera Verde’ / Divulgação

Enfrentando muita resistência dos guardas locais contra sua autoridade, a personagem conta somente com a ajuda do policial indígena Reynaldo (Nelson Camayo) para cumprir com a missão. Paralelamente, Yua (Miguel Ramos) e Ushe (Angela Cano), dois indígenas chamados por outras tribos de Os Eternos, lutam para proteger as riquezas da floresta de tentativas de dominação. 

Essa é a segunda vez que Guerra filma na Amazônia. Em 2016, o diretor foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por O Abraço da Serpente, produção que narra a interação de um indígena com um homem branco; algo próximo do que acontece na série da Netflix. Guerra também já havia trabalhado com Toulemonde em Pássaros de Verão – ele como codiretor ao lado de Cristina Gallego e Toulemonde como roteirista – , filme que estreia nos cinemas brasileiros no próximo dia 22. 

FRONTEIRAS

As fronteiras físicas na série são tão ricas em significado quanto as alegóricas. Do encontro de Brasil e Colômbia, por exemplo, a produção traça um retrato realista de regiões fronteiriças. Ali, dividindo espaço com os mais variados sotaques de português, espanhol e línguas indígenas, há abandono público e militarismo; há a cidade e a floresta; gente branca, negra e povos nativos; o tecnológico e o analógico; o tradicional e o contemporâneo. 

Imagem: divulgação

Mas para além do registro de um tecido social singular, formado pelas especificidades de questões que convivem nas fronteiras entre países, a série rompe com as barreiras que separam o realismo do extraordinário. Com sutileza,  comentário social e fantasia se complementam e dão o tom da narrativa. 

Para tanto, o suspense criminal acaba servindo mais como pretexto para inserir qualquer assinante da Netflix, de qualquer lugar do mundo, numa trama repleta de simbolismos, cujo gênero de investigação consegue soar familiar a todos.

COSMOVISÃO INDÍGENA 

Duas frentes narrativas são adotadas em Frontera Verde. Na primeira, a interação de Helena com Reynaldo gera situações de percepção de alteridades. Ela, branca, vem da cidade; é uma estranha na floresta, mas tem boas intenções. Ele, afastado da própria comunidade e agora policial, faz a ponte entre o urbano e a mata; carrega valores ancestrais, mas aprendeu a se virar nas engrenagens de instituições e burocracias corrompidas. Já Yua e Ushe  introduzem na trama a magia da grandiosidade e dos mistérios da floresta. 

Ushe (Angela Cano) e Yua (Miguel Ramos) / Divulgação

A série recusa facilidades narrativas, mediocridades no emprego do sobrenatural e simplismos sobre as dinâmicas sociais da região amazônica. Por isso, a fantasia é usada a serviço da construção de metáforas que possam tornar acessíveis alguns conceitos da cosmovisão indígena. 

Desse modo, a Mãe Terra aparece como sagrado para questionar as relações contemporâneas do ser humano com o todo; o conhecimento é o sangue que pulsa pelas veias da vegetação e deve ser protegido de interesses individualistas; o tempo não é linear; o universo habita consciências individuais e chama para responsabilidades coletivas. A floresta é o coração do mundo, ela bombeia tudo o que o resto do corpo precisa para manter-se organicamente funcionando e conectado com o cosmos e a ancestralidade.

E como não poderia ser diferente nesse contexto, várias são as comunidades, os personagens e, consequentemente, os atores indígenas em tela.  Essa deve ser, aliás, uma das séries originais Netflix ocidentais com mais atores não brancos no elenco. Não por acaso: se o cerne da obra é a cosmologia indígena, nada mais coerente do que garantir a presença da diversidade de indivíduos, manifestações culturais e visões de mundo dos povos originários; retratados como sujeitos ativos de seu meio. 

A SÉRIE

Sem cair em representações esdrúxulas de comunidades e lugares, Frontera Verde ficcionaliza temas que são caros a todos aqueles que se preocupam com o futuro do planeta: desmatamento, tráfico de drogas, colonização, genocídio indígena, exploração de recursos naturais, ascensão do fascismo e desvalorização do saber. 

Reynaldo (Nelson Camayo) e Helena (Juana del Rio) / Divulgação

Do mesmo modo, trilha sonora, montagem e fotografia colaboram com a constituição da não-linearidade do tempo e do transitar por entre o realismo regional e o imaterial das experiências fantásticas dos personagens. Por um lado, tais funções técnicas podem propiciar algumas situações de confusão – nada que não possa ser ajustado ou justificado em uma próxima temporada. Por outro, fica perceptível que são escolhas postas para privilegiar a atmosfera de interdependência dos acontecimentos do enredo.

Além disso, nada soa exaustivamente didático. Frontera Verde consegue ser agradável ao tempo do entretenimento sem se afastar do autoral ou subestimar o público. Como resultado, temos uma série perfeitamente capaz de disputar imaginários, apresentando ao mundo características de nossa região que nunca chegam com potência a canais com audiência de massa.

USHE E HELENA

Outro aspecto importante da nova original colombiana da Netflix é que ela reserva um lugar especial para suas personagens mulheres.  A união de Ushe e Helena é baseada em mutualidade, empatia, interseccionalidade e resistência frente a forças de destruição que até passam certos períodos dormentes, mas que ciclicamente voltam a emergir em busca de poder. 

Imagem: divulgação

Helena, enquanto mulher branca e da cidade, é chamada a confrontar sua própria identidade e assumir sua parcela simbólica de responsabilidade sobre a Amazônia. Assim, o que ameaça Ushe também deve ser encarado por ela como um problema. 

Cabe às duas, então, aliadas aos homens indígenas e a partir das particularidades que as diferenças de experiências de vida conferem às suas potencialidades, impedir que o fascismo devore os conhecimentos sociais e históricos da cultura que mantém o coração da Mãe Terra funcionando.

Nesse sentido, as personagens operam como signos de um chamado de tomada de consciência coletiva sobre uma mesma luta, que deve ser pautada em comunhão e que diz respeito, acima de tudo,  à importância da Amazônia para além das próprias fronteiras. 

Nota-se que a série não pretende tratar de saudosismo barato sobre um passado “primitivo” ou glorioso da região amazônica. Trata-se, na verdade, de mirar um amanhã considerando o caminho. Ressignificar o que deu certo antes e combater o que é retrógrado partindo de novos lugares – como o protagonismo feminino.

A série ganha ainda mais relevância política ao estrear durante a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas no Brasil. A mobilização que reuniu milhares de mulheres de diversas etnias e de diferentes estados do Brasil e países da América Latina em Brasília, com o objetivo de fazer frente aos avanços destrutivos do governo fascista de Jair Bolsonaro; governo que declarou guerra à Amazônia, ao conhecimento, às minorias e aos movimentos sociais e, sobretudo, ao futuro.

PARECE ‘O ESCOLHIDO’?

Quando o trailer de Frontera Verde foi liberado pela Netflix, muita gente pensou que assistiria a um repeteco da série brasileira O Escolhido. Não é o caso. A não ser pela presença do sobrenatural e pelas cenas ambientadas no meio de florestas, as duas produções não têm muito em comum. 

Imagem: divulgação

Grande parte do que há de frágil em O Escolhido é definitivamente melhor conduzido em Frontera Verde: desde  a identidade dos personagens, passando por suas relações com o contexto macro, até os cenários, que aqui não parecem assépticos como estúdios de novelas. 

Seria mais justo, portanto, dizer que a produção colombiana tem muito mais a ver com a brasileira Aruanas (original Globoplay). Apesar da diferença de gêneros – uma mistura fantasia e policial e a outra faz ficção realista -, as duas possuem uma mensagem muito semelhante, dão conta de conflitos também muito próximos e são realizadas por equipes que se dedicam a retratar universos complexos com profundidade, mesmo no âmbito do entretenimento.

Logo, não se deixe levar pelas aparências. Frontera Verde pode ser uma ótima experiência audiovisual (tanto narrativa quanto esteticamente); além de ser, claro, uma oportunidade valiosa de prestigiar o trabalho de bons profissionais latino-americanos, gente que vem propondo novos olhares às produções seriadas distribuídas mundialmente.

Trailer: 
(Fonte: Netflix Brasil/ YouTube)

Ficha técnica

Criação: Jenny Ceballos, Mauricio Leiva-Cock, Diego Ramírez-Schrempp

País: Colômbia

Ano: 2019

Elenco: Juana del Rio, Nelson Camayo, Miguel Ramos, Angela Cano

Gênero: Policial, Fantasia

Distribuição: Netflix

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