[Coluna] O Doutrinador é uma infeliz tentativa de ser “isentão” no cinema nacional

O Doutrinador, primeira grande produção sobre um herói brasileiro a chegar aos cinemas, nasceu dos quadrinhos homônimos de Luciano Cunha e estreou no início de novembro. Nenhum outro momento da história do país seria tão conturbado para sua chegada às salas de exibição quanto o que vivemos neste ano de eleição presidencial – coincidência ou não, a data de lançamento do longa foi alterada algumas vezes, e a estreia acabou acontecendo após o segundo turno das eleições.

Na trama dirigida por Gustavo Bonafé, o ator Kiko Pissolato dá vida a Miguel, um policial de elite bem treinado que, depois de uma tragédia familiar, se revolta com o contexto de abandono público, de corrupção e violência no Brasil e passa a usar uma máscara de gás com olhos vermelhos para caçar um por um dos corruptos a quem atribui a responsabilidade sobre o caos do país.

Miguel (Kiko Pissolato) é o Doutrinador / Divulgação

A premissa do nosso filme de (anti) herói brasileiro, então, é simples: depois de um trauma pessoal, o protagonista começa uma matança de políticos corruptos baseado no ódio e na revolta que sente em relação ao contexto brasileiro. Nesse caso, Miguel não é exatamente um justiceiro. Sua jornada tem muito mais a ver com vingança pessoal do que com justiça social. Seu objetivo é matar cada uma das pessoas que ele considera responsáveis por todo o mal do país – e por todo mal causado a ele, de alguma forma.

Qualquer semelhança com o discurso pobre – e perigoso –  sobre combate irracional à corrupção parece não ser mera casualidade. O filme apela para aquilo que o brasileiro tem sentido de pior para fazer seu herói acontecer: ódio e descrença. Claro que corrupção é um grande problema brasileiro, mas colocar um problema complexo como esse num patamar de luta entre bem e mal só faz fundamentar toda a ignorância e polarização que tomou conta da esfera pública nos últimos meses.

O ano de 2018 foi marcado por disputas de imaginário coletivo, por perseguição ao conhecimento e aos fatos concretos, via enxurrada de notícias falsas sendo espalhadas pelas redes sociais dos cidadãos, e por negação da realidade. O discurso anti-corrupção nunca foi tão burro e desastroso. Escolheram um alvo para perseguir e difamar, elegeram e endeusaram um “mito” autoritário, preconceituoso e despreparado como salvador da pátria. O bem e o mal são conceitos absolutamente vazios no Brasil. Um filme que legitima violência, perseguição e ódio pessoal simplista, nesse contexto de caos, é um filme problemático e nada bem-vindo.

Eduardo Moscovis é a personificação da corrupção em ‘O Doutrinador’ / Divulgação

Corrupção não é um problema exclusivo do Brasil e nem de partidos políticos. Como bem apontou Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília, no texto “A reemergência da direita brasileira”, publicado pela editora Boitempo no livro O Ódio como Política: “A revolta contra a corrupção é marcada pela seletividade, mas também pelo maniqueísmo. A corrupção não é entendida como um produto das relações de poder político com o poder econômico, mas como um desvio de pessoas sem caráter”.

Nossa crise de representação é gravíssima, e na tentativa desesperada e despreparada de buscar por qualquer tipo de justiça, a população corta cabeças. A troco de nada, no fim das contas. Personificar a corrupção e perseguir determinados rostos demonstra o quanto é ingênuo o discurso anticorrupção que se instaurou no país. Enquanto os doutrinadores da realidade sentem-se justiceiros perseguindo determinados nomes, outros tantos setores da sociedade se articulam e se aproveitam da confusão para conduzir a ignorância das massas. Explodir todos os políticos, como se diz, não é nem de longe a solução. Isso porque o projeto de nação que tem dado errado segue firme, forte e escondido atrás de salvadores da pátria fajutos.

Em raros momentos O Doutrinador se preocupa em ampliar seu discurso e ir além da ficcionalização rasteira de inimigos. Quando o faz, passa a mensagem de que todos são corruptos mesmo e paciência, é o que tem pra hoje. Mensagem no mínimo equivocada, e que só faz aprofundar a crise de representação democrática.

Imagem: divulgação

Assisti ao filme numa sessão em que só havia homens na plateia. Um deles vibrando e torcendo na cena em que o Doutrinador desfigura o rosto de um político com socos cheios de ódio. Definitivamente não é desse tipo de comportamento popular que precisamos agora – e não é difícil imaginar que rosto o espectador eufórico gostaria de desfigurar. Também não precisamos incentivar masculinidades tóxicas e violentas,  muito menos a imagem de um salvador da pátria.

Tentando ser “isentão”, o discurso do filme arranha aqui e ali, dando a entender que tudo na política é podre. Chega a, superficialmente, criticar a corrupção na polícia e expõe de leve a hipocrisia do envolvimento da igreja e de seus interesses no campo político. De qualquer maneira, são momentos frágeis. Eles não conseguem atingir tanto as paixões das pessoas quanto a cena do rosto desfigurado pelo ódio do agressor “justiceiro”.

Visualmente, O Doutrinador é uma produção atraente – como as grandes produções de filmes estrangeiros adaptados de quadrinhos costumam ser. Tecnicamente não ficamos devendo muito. As tomadas aéreas são bonitas, bem como as cenas externas. A iluminação, por vezes esverdeada, vermelha e roxa, faz uma bela referência aos quadrinhos e embasa a atmosfera do longa. A violência é bastante gráfica – com direito a pocinhas de sangue ao redor dos cadáveres – e também remonta ao universo das HQs.

Miguel e a hacker Nina (Tainá Medina) / Divulgação

Por outro lado, os “vilões corruptos” cartunescos que soltam risadas maldosas soam um tanto quanto exagerados no cinema. Todas as atuações são engessadas, e os palavrões são praticamente lidos com nenhuma naturalidade. Os atores se esforçam, mas não há muito para ser retirado de personagens tão rasos, unidimensionais e meramente funcionais para o andamento de ações que devem acontecer. Perde-se, inclusive, a chance de um maior aproveitamento da parceria entre Miguel e a hacker Nina (Tainá Medina).

Por fim, vale mencionar a cafonice dos letreiros com o nome de um dos patrocinadores do filme inseridos no topo de um prédio em verde neon e a bizarrice do final da trama, mais grotesca impossível. Não faltou potencial em O Doutrinador. O que faltou foi responsabilidade democrática.

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Assista ao trailer de O Doutrinador:

(Fonte: Ingresso.com / YouTube)

Ficha técnica

Direção: Gustavo Bonafé

Duração: 1h48

País: Brasil

Ano: 2018

Elenco: Kiko Pissolato, Samuel de Assis, Tainá Medina

Gênero: Drama, Ação

Distribuição: Downtown Filmes

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