A Dona do Pedaço e as gafes de Walcyr Carrasco

No ar desde maio deste ano, A Dona do Pedaço, novela das 21h da Rede Globo, tem feito jus ao usual e polêmico texto de Walcyr Carrasco. O autor, que fez a sua estreia no horário em 2013, com Amor à Vida, é notório pela escrita despretensiosa para a televisão; com tons de comédia e, por vezes, incongruente com a realidade.

Mas, os problemas textuais de Carrasco ficaram evidentes somente a partir da mudança tonal que uma novela do horário nobre exige. Lá em 2000, quando fora lançado como autor principal de uma produção da Globo, em O Cravo e a Rosa, Carrasco brilhou pela leveza de uma escrita simples e divertida. Adaptado do romance A Megera Domada, de William Shakespeare, o folhetim das 18h é lembrado até hoje como um marco das produções do horário. Assim, seguiram-se Chocolate com Pimenta (2003) e Alma Gêmea (2005); ambas grandes sucessos da emissora.

Posteriormente, a popularidade do texto de Carrasco conquistou-lhe uma escalada à faixa das 19h. Em Sete Pecados (2007) e Caras & Bocas (2009), o autor foi capaz de repetir as doses de fama de seus trabalhos anteriores e, diferentemente destes, através de enredos atualizados para a época de exibição. Já em sua última novela da faixa, Morde & Assopra (2011), Carrasco começou a dar indícios de uma perda de controle de seu próprio texto.

Maria da Paz (Juliana Paes) em ‘A Dona do Pedaço’ / Divulgação Rede Globo

Uma breve contextualização

É claro que, para que uma novela obtenha sucesso, é necessária uma série de coisas que não depende exclusivamente de seu texto. A audiência pode tanto incentivar a trama quanto sabotá-la; isso porque, quando a produção tende a desagradar o público, o texto sofre com drásticas transformações. Logo, os objetivos do autor para com sua história podem ser contrariados; ao mesmo tempo em que manter uma unidade narrativa torna-se algo muito mais difícil.

Em Morde & Assopra, por exemplo, a mistura de ficção científica com besteirol afastou o público e fragilizou o texto de Carrasco. No fim, a inconsistência da história era evidente. Quando o autor passou para o horário nobre, no entanto, após a exibição de Gabriela (2012) no horário das 23h, o caminho para a audiência foi o inverso.

Em Amor à Vida, uma trama que parecia redonda – e com o potencial para desenvolver-se plenamente – culminou na hesitação do escritor. Ou melhor, graças aos altos índices de audiência, Carrasco viu-se na necessidade de trazer resoluções e elementos mais apelativos à faixa das 21h. Afinal, segundo o que o autor tem apresentado nos últimos anos, vale tudo para que a popularidade de seus folhetins mantenha-se intocada.

‘Chocolate com Pimenta’ / Divulgação Rede Globo

Redenção e cura gay

De animado e/ou excêntrico, o texto de Carrasco passou a ser extremamente simplista, ao servir o senso comum e as demandas de quem acompanha as novelas. A partir daí, começam os problemas textuais, uma vez que o público médio da TV aberta diverte-se com temas polêmicos e, por vezes, reforça estereótipos conservadores.

Tanto em Amor à Vida quanto no segundo sucesso de Carrasco das 21h, O Outro Lado do Paraíso (2018), casais de homossexuais foram retratados de maneira socialmente irresponsável pelo autor. No primeiro, os cônjuges Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcello Antony), ambos gays assumidos, decidem ter um filho através da barriga solidária da amiga Amarilys (Danielle Winits). Mas, tempos depois, Amarilys envolve-se com Eron e engravida acidentalmente. Por conseguinte, Eron torna-se infiel, e Niko, após descobrir o caso de infidelidade do marido, rompe com o mesmo.

‘Amor à Vida’ / Divulgação Rede Globo

Além disso, a novela abordou outros temas de forma superficial. No fim, Niko fica com Félix (Mateus Solano), o vilão intencional da trama. Intencional porque, mesmo que o antagonista da história tenha abandonado a sobrinha recém-nascida em uma caçamba de lixo, seus bordões e o jeito cômico agradaram bastante o público; a ponto de Carrasco colocá-lo como um redentor espontâneo – ou, como um vilão com crise de consciência.

Na segunda trama, O Outro Lado do Paraíso, o casal Samuel (Eriberto Leão) e Cido (Rafael Zulu) também sofreu com o texto nada cuidadoso do autor. Forçado pela homofobia social e pela própria mãe, Adinéia (Ana Lucia Torre), a ter um relacionamento heterossexual, Samuel casa-se com Suzy (Ellen Roche). Mais tarde, Cido, então amante de Samuel, e a namorada Irene (Luciana Fernandes) vão morar junto com ele, Suzy e a Adinéia; todos cientes de suas relações uns com os outros. No mínimo, constrangedor.

A coach milagrosa e a “xícara suja”

Já em um núcleo distinto da novela, a jovem Laura (Bella Piero) tem um trauma ofuscado pela própria memória. Para ajudá-la a relembrar e a livrar-se das consequências do ocorrido, a advogada e coach de autoajuda Adriana (Julia Dalavia) realiza uma sessão de hipnose com a vítima. Então, Laura revive experiências de abusos sexuais durante a infância e, prontamente, cura-se do trauma.

Ademais da irresponsabilidade ao reduzir o tratamento de vítimas de abusos a uma simples sessão de hipnose, a cena tornou-se ainda mais absurda no fim do capítulo; quando, junto com os créditos, aparecera a informação de que tudo não passara de um merchandising do Instituto Brasileiro de Coaching (IBC). Ou seja, o que serviria para informar o espectador da telenovela transformou-se em uma campanha de publicidade.

‘O Outro Lado do Paraíso’ / Divulgação Rede Globo

De volta a Amor à Vida, outro tópico de surpreendente incongruência diz respeito à dramatização de indivíduos soropositivos. A enfermeira Inaiá (Raquel Villar), depois de descobrir ser portadora do vírus HIV, é rejeitada pelo namorado Laerte (Pierre Baitelli). E, para piorar a situação, o ex-namorado refere-se à enfermeira como “xícara suja” – em alusão ao vírus e ao fato de Inaiá ter relacionado-se com vários parceiros sexuais.

À época de exibição, aliás, foi ao ar uma cena em que alguns homens, que teriam feito sexo com a personagem, comemoram o resultado negativo de seus testes de HIV, nos corredores do hospital em que Inaiá trabalha. A enfermeira, também, protagonizou uma cena lamentável, na qual questiona um colega de trabalho sobre o “perfil” que ela considera o mais comum a soropositivos: pessoas homossexuais. Um desserviço completo por parte da produção televisiva.

A herança de A Dona do Pedaço

Agora, na atual A Dona do Pedaço, os eventuais problemas do texto de Carrasco dão as caras novamente. Para começar, a jovem transexual Britney (Glamour Garcia) passa por maus bocados com o ex-namorado, o confeiteiro Abel (Pedro Carvalho). Desde o início da novela, Britney reluta em contar a Abel sobre seu sexo biológico, justamente por temer que ele não a aceite.

Na cena em que a jovem confessa ser uma mulher transexual, a reação do namorado não poderia ser pior – mesmo que o texto condiga com a realidade brasileira transfóbica. Ao invés de intensificar os cuidados com os diálogos e reproduzir uma conversa realista, Carrasco utilizou frases altamente expositivas, como a em que Abel xinga Britney de “monstro de Frankenstein”. Após a discussão do casal, o tom de comédia retornou ao núcleo dos ex-namorados, através das provocações “bem-humoradas” do confeiteiro contra a jovem.

Josiane (Agatha Moreira) em ‘A Dona do Pedaço’ / Divulgação Rede Globo

Já a vilã Josiane (Agatha Moreira), filha da protagonista Maria da Paz (Juliana Paes), teve suas doses absurdas de maldade justificadas pela clássica “cartada do psicopata”. Ou melhor, em determinado momento de A Dona do Pedaço, a psicóloga Linda (Rosamaria Murtinho) chega, através de terceiros e sem sequer conversar com Josiane, à conclusão de que a filha de Maria da Paz é uma psicopata.

No entanto, para dar-se um diagnóstico de quaisquer doenças psiquiátricas, principalmente a de um transtorno de personalidade, é necessário o acompanhamento de um psiquiatra e uma análise intensa do histórico do paciente. É claro que existem casos extremos, mas, independentemente disso, somente um médico especializado pode determinar se alguém apresenta aquilo que é chamado popularmente de “psicopatia”.

Conversações de época

Para além disso, há uma porção de outras histórias e resoluções surreais em A Dona do Pedaço; como o fato de o justiceiro Chiclete (Sérgio Guizé) ter cogitado matar a própria amada, Vivi (Paolla Oliveira), para cumprir com a encomenda feita por um desconhecido. O casal Vivi e Chiclete, aliás, é muito romantizado pelo texto de Carrasco – o que é um grande problema, considerando que um deles quase chegou a atirar contra o outro.

Quanto aos diálogos, de maneira geral, estes são bastante simplistas e expositivos. Inclusive, isso dá a impressão de uma dificuldade do autor de desvincular-se de conversações entre personagens de época. A pouca verbalização, em alguns momentos, parece tirada de O Cravo e a Rosa ou Chocolate com Pimenta, por exemplo (que são ambientadas nas décadas de 1920 e 1930).

Vivi (Paolla Oliveira) e Fabiana (Nathalia Dill) em ‘A Dona do Pedaço’ / Divulgação Rede Globo

Portanto, Walcyr Carrasco pode ser um escritor competente em determinadas produções – tais como na mais recente Êta Mundo Bom! (2016), na qual acertou melhor o tom e obteve muito sucesso, ou na sedutora e icônica Verdades Secretas (2015) –, mas, ao tratar de conteúdo para as 21h, o autor peca vergonhosamente.

Se continuar assim, a Rede Globo jamais acompanhará as evoluções progressistas das novas gerações no Brasil. Afinal, de que adianta abordar certos temas em alguns programas se, no horário de maior audiência da emissora (o da novela das 21h), tanto esforço é anulado por um texto preguiçoso? Esperemos pelos próximos capítulos – de A Dona do Pedaço e da vida real.

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