Crítica: Desalma (Globoplay)

Criada e escrita por Ana Paula Maia, Desalma marca a estreia do gênero horror entre as séries originais Globoplay. Na trama, ambientada no interior do sul brasileiro, numa cidade fictícia chamada Brígida, as atrizes protagonistas Cássia Kis, Maria Ribeiro e Cláudia Abreu representam famílias “fundadoras” envolvidas num drama sobrenatural e folclórico.

‘Desalma’/ Divulgação

Tudo começa quando Giovana (Ribeiro) perde abruptamente o marido, Roman Skavronski (Nikolas Antunes), e decide deixar São Paulo para viver com as duas filhas em Brígida, cidade natal do falecido. Habitado por uma colônia de imigrantes ucranianos, o lugar, quase personagem à parte no enredo, é assombrado por segredos guardados há décadas. 

Reza a lenda local que o assassinato mal resolvido da jovem Halyna (Anna Melo) no fim dos anos 1980, durante a noite de celebração de Ivana Kupala, um festival pagão tradicional da comunidade de Brígida, tranformou a garota numa entidade mística que habita floresta, rios e cachoeiras à espera de vingança. Na época, Aleksey Skavronski (Nicolas Vargas), primo de Roman, foi considerado culpado pelo crime, embora sua irmã, Ignes (Abreu), nunca tenha acreditado na sentença.

Com a morte de Roman, a chegada de Giovana e a decisão de Brígida de voltar a comemorar Ivana Kupala, após 30 anos do assassinato que marcou negativamente a celebração, a relação entre os influentes Skavronski e a bruxa Haia (Kis), mãe de Halyna, é novamente tensionada. Ao mesmo tempo, toda a cidade passa a sofrer com fenômenos extraordinários; e Giovana começa a enfim conhecer o passado da família do marido. 

Um crime, uma comunidade hermética, tradições, segredos, reviravoltas e boas doses de bruxaria. Enriquecendo elementos típicos das narrativas de suspense e terror com referências à cultura eslava e características do contexto sulista rural brasileiro, Desalma aposta numa atmosfera carregada para envolver o espectador.

FLUIDEZ

Dividida em duas linhas temporais que se intercalam constantemente, a série desenvolve os acontecimentos de 1980 para explicar os fenômenos da atualidade de Brígida. Assim, num primeiro momento somos apresentados à cidade e suas particularidades pela chegada da cosmopolita Giovana. Depois, o arco de Ignes ganha força como condutor das revelações que cruzarão passado e presente.

Imagem: divulgação

Mas, a despeito da impressionante direção artística de Carlos Manga Jr e da intrigante premissa criada por Maia, Desalma demora a conseguir fluidez. Em grande parte, porque há na essência da primeira temporada da produção alguma insistência em provar ao espectador o caráter sobrenatural da trama.

É somente a partir do sexto episódio, então, que a narrativa consegue equilibrar a repetição de cenas funcionais, voltadas principalmente à sugestão do espanto e ao diálogo com sequências comuns ao horror (um esconde-esconde numa casa assombrada, uma criança possuída ou animais agindo estranho), para finalmente desenrolar a história. 

Também é do meio para o final da temporada que Desalma alcança sua maior façanha: estabelecer, apesar de todos os seus chavões de gênero,  um universo próprio de relações e folclore. E ainda que esse universo seja passível de críticas, já que definitivamente falta diversidade no elenco, é preciso reconhecê-lo como eficiente em seus propósitos. 

Para isso, torna-se indispensável entender a série como uma obra elaborada tanto para o público nacional como para o internacional. As fórmulas não estão ali por acaso, e ao combiná-las com acenos para questões globais como perdas, machismo, homofobia e imigração, mesmo dentro dos nichos horror, suspense e fantasia e a partir de especificidades brasileiras, Desalma alcança conversar com os mais variados tipos de audiência. Da mesma forma, linguagem estética e escolhas de direção se relacionam diretamente com um certo padrão internacional de concepção de séries de suspense.

A BRUXA HAIA 

Haia é a principal afetada pela inicial falta de fluidez da produção. Interpretada de maneira impressionante por Cássia Kis, a personagem representa um pilar fundamental da trama – tanto no quesito composição de atmosfera como nos desdobramentos dos dramas pessoais e coletivos vivenciados pela comunidade de Brígida.

Haia (Cássia Kis)/ Divulgação

Estigmatizada por sua posição social, por ser sozinha e pelo misticismo que a rodeia, a bruxa da cidade vive marcada pelas perdas do marido e da filha. Ele, funcionário da família Skavronski, morto num acidente de trabalho. A menina, assassinada justamente por um Skavronski.

Haia nunca se conformou com a morte de Halyna nem nunca desistiu de brigar por justiça pelo marido. E embora pareça resiliente por se isolar num casebre perto da floresta, recebendo apenas visitas de um sobrinho e das clientes que a procuram para leituras de tarot, ela anseia pelo momento certo para reencontrar a filha – custe o que custar.

No entanto, ainda que indiscutivelmente digna de protagonizar um arco complexo e grandioso, a personagem, que em muitos momentos subverte o papel fantasioso da bruxa para se aproximar do papel social da bruxa, acaba se chocando com o dilema do descompasso da narrativa. Ao insistir em excesso no poder da sugestão como atrativo principal, empregando energia quase exclusivamente nas tais sequências típicas de horror e suspense e sustentando mistérios por mais tempo que o necessário, Desalma atravanca também a desenvoltura de Haia. 

Consequentemente, demora até que a protagonista possa deixar de entrar e sair de cena orbitando outros arcos para se mostrar diretamente relacionada à temática das possessões; até aqui, problemática central no enredo.  Quem era essa mulher antes das tragédias que a marcaram? Quem é ela agora? Qual a dimensão de seus poderes?  Qual seu plano? Por enquanto, sabemos muito pouco sobre Haia.

PRIMEIRA TEMPORADA

Longe de ser um enlatado, a primeira temporada de Desalma funciona bem como introdução ao universo criativo de Ana Paula Maia.  Fica para a próxima temporada, porém, a vontade de saber mais sobre as mulheres que resistem ao tempo trocando suas almas de corpos. Afinal, um contínuo e generalizado troca-troca de almas por Brígida pode rapidamente deixar de ser suficiente para sustentar o interesse da audiência.

Sendo assim, é possível que em breve a série dependa de mais do que simples acenos a temas complicados. Resta saber quanto a equipe criativa abraçará a questão da bruxaria e se aprofundará nas peças postas em jogo; ou quanto o cenário brasileiro ainda terá de relevância nessa história onde predominam as lendas eslavas. Além disso, as arestas soltas de muitas das atuações – do elenco jovem, principalmente – serão aparadas? E por fim, mas não menos importante: as convenções do sobrenatural seguirão prevalecendo sobre o fluxo narrativo da história?  

Leia também: “Eu Não Sou uma Bruxa: a perseguição contra as mulheres nunca parou”

Ficha técnica 

Criação: Ana Paula Maia

País: Brasil

Ano: 2020

Elenco: Cássia Kis, Cláudia Abreu, Maria Ribeiro, Nikolas Antunes, Anna Melo, Nicolas Vargas

Gênero: Suspense, Drama, Terror

Distribuição: Globoplay

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário