Matar a un Muerto: o que fazemos com nossos mortos?

Paraguai, 1978. Durante o regime militar do ditador Alfredo Stroessner, e em meio ao massacre instalado nos países do Cone Sul pela Operação Condor, dois homens humildes e comuns compartilham de uma rotina macabra: para ganhar a vida, eles se dedicam a, clandestinamente, enterrar os cadáveres da repressão. Isolados num bosque, e seguindo orientações dos militares paraguaios, Pastor (Ever Enciso) e Dionisio (Aníbal Ortiz) recebem todos os dias uma nova remessa de corpos que devem desaparecer do mapa.

‘Matar a un Muerto’/ Divulgação

Em um de seus tantos dias iguais, porém, algo os surpreende: entre os mortos, alguém ainda está respirando. A partir daí, a dupla, que nunca havia cogitado matar alguém e que simplesmente se limitava a realizar suas funções de maneira resignada, entra num dilema moral sobre o que fazer com o sujeito. Matar “o morto” para encerrar o assunto ou deixá-lo vivo e correr o risco de enfrentar a ira dos chefes militares?

Falado quase inteiramente em guarani, Matar a un Muerto, primeiro longa-metragem de Hugo Giménez, flerta com o suspense numa trama que aplica à realidade latino-americana o conceito de banalidade do mal – cunhado pela pensadora alemã Hannah Arendt após o Holocausto.  

OS RASTROS DA MEMÓRIA 

Silenciosos e ensimesmados, Pastor e Dionisio representam a última etapa do processo de desaparecimento dos corpos testemunhas dos horrores das ditaduras da América Latina. Cabe a eles “limpar a bagunça” dos militares, e embora demonstrem sentir algum tipo de medo dos chefes, os dois executam suas tarefas sem pensar muito no assunto. São as adversidades do dia a dia, como o rádio que para de funcionar às vésperas da final da Copa do Mundo, um ou outro erro de cálculo na profundidade das covas ou a chegada de uma tempestade, que tomam o centro de suas maiores preocupações

Divulgação

Mas quando a respiração do sobrevivente chama a atenção dos dois coveiros, o pacto de normalidade compulsória que imperava sobre o trabalho cotidiano é rompido. Então, inevitável e imediatamente eles são retirados da inércia habitual e arrastados para uma profunda crise de consciência. 

Nesse momento, em que o confinamento a céu aberto, a convivência e as privações a que são submetidos se tornam insuportáveis, o filme chega a cortejar o realismo mágico para levantar uma discussão sobre a possibilidade de Pastor e Dionisio serem, ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices daqueles que os empregam. Afinal, qual o nível de responsabilidade individual dos que trabalham, mesmo que por necessidade, para manter operantes as dinâmicas da brutalidade? 

Colocando todo o mecanismo de naturalização do horror dos regimes ditatoriais latino-americanos em cheque (passando inclusive por um apontamento do papel alienante da Copa do Mundo no período), Matar a un Muerto pretende refletir também a respeito dos percalços trilhados pela memória coletiva da região nos últimos anos. Sisudo e inquietante, o longa se destaca por nos provocar sobre o que fazemos com nossos mortos. Enterramos para que não se fale mais disso, encaramos a memória de toda a truculência passada ou ainda estamos decidindo como agir?

Produção importante do cinema paraguaio contemporâneo. 

*Exibido no Festival de Gramado 2020. Ainda sem data de estreia comercial.

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Ficha Técnica:

Direção: Hugo Giménez

Duração: 1h27

País: Paraguai, França, Argentina

Ano: 2019

Elenco: Ever Enciso, Aníbal Ortiz, Silvio Rodas, Jorge Román

Gênero: Drama, Suspense

Distribuição: —

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