Roma: cinema latino-americano, protagonismo feminino e luta de classes

Roma, longa mexicano original Netflix vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2018; escolhido pelo México para tentar uma indicação ao Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro e exibido no encerramento da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é uma obra-prima de realizador.

Alfonso Cuarón não apenas dirigiu e roteirizou seu novo trabalho, como também foi produtor, montador e diretor de fotografia. Tanta dedicação pessoal em cada uma das etapas do filme não poderia render outro resultado: Roma é uma preciosidade do cinema latino-americano contemporâneo. Uma obra grandiosa tanto pela estética da bela fotografia em preto e branco quanto pela temática e pelo protagonismo feminino.

A trama é ambientada na Cidade do México de 1970. Ali vive uma família de classe média prestes a desmoronar. A rotina familiar se sustenta coordenada por Cleo (Yalitza Aparicio), uma mulher de ascendência indígena que trabalha na casa como empregada doméstica e babá. Mesmo assim, nem toda a dedicação e o afeto da funcionária são capazes de conter os danos causados pela constante ausência do pai que pouco fica em casa.

Imagem: divulgação

Alienados de um  contexto social mexicano marcado por confrontos entre milícias do governo e protestos estudantis, a família, composta pela mãe Sofia (Marina de Tavira), pai (Andy Cortés), avó e quatro crianças, vive os percalços de sua intimidade. Ao mesmo tempo, Cleo se divide entre trabalho, relacionamento conturbado e suas próprias batalhas enquanto mulher sozinha.

A sensação de que as coisas não transcorrem bem é permanente e construída por Cuarón a partir de elementos do cotidiano, seja através do tamanho problemático do carro da família ou das fezes de cachorro espalhadas pelo quintal. Desses pequenos conflitos do espaço do micro, das ações das personagens que compõem aquela casa, Roma consegue projetar-se ao universo do macro, das dinâmicas sociais.

Com uma sensibilidade emocionante, as lentes e a narrativa de Cuarón mostram o penar dos dias mais corriqueiros; bem como as diferenças entre os penares de uma mulher branca de classe média e os de uma indígena e pobre.

Em alguns momentos, Roma faz lembrar um pouco do nosso querido filme brasileiro Que Horas Ela Volta? (2016), de Anna Muylaert. Isso porque, assim como Val (Regina Casé), Cleo também é “como se fosse da família”. Ela também cria os filhos da patroa – aliás, maternidade é outro tema que os dois filmes tratam sob perspectivas conflitantes e complementares. Sua relação com dona Sofia não é tão tóxica quanto a que existe entre Bárbara (Karine Teles) e Val. As duas até conseguem desenvolver uma relação de parceria a partir do que as une: ser mulher. No entanto, essa relação não ultrapassa as barreiras de classe, e o ciclo que oscila entre proximidade e impessoalidade parece sem fim.

Cleo brincando de morta / Divulgação

Em uma das várias cenas tocantes do longa, logo nos primeiros minutos da projeção, Cleo deixa seus afazeres domésticos por alguns instantes para brincar com um dos filhos da família. O garoto está se fingindo de morto. Ela então deita ao seu lado e também se finge de morta. Depois de uns segundos de silêncio a protagonista diz que “gosta de estar morta”, dando a entender que breves momentos de pausa são raros em sua rotina e lhe fazem muita falta.

Assim é Roma, simultaneamente delicado e estrondoso. Reside no poder dos detalhes, dos enquadramentos, do não dito e das ações sutis, a riqueza e a grandeza da produção. Um filme que tem todo potencial e relevância para tornar-se atemporal. Com seu lançamento ganhamos nós, sociedade latina.

Por fim, mas não menos importante, é válido dizer que Roma suscita também o mais polêmico debate acerca do audiovisual na contemporaneidade: Netflix é cinema? Roma é um filme para telas pequenas? Bem, há quem diga que exibir um filme belo como esse somente nas telas pequenas e fora do ambiente sagrado das salas de cinema seria heresia. Por outro lado, o fato de Roma ser um original distribuído pela Netflix significa que a obra estará ao alcance de uma quantidade muito maior de pessoas. Com certeza essa discussão engloba muitos prós e contras – e por isso é tão extensa.

Imagem: divulgação

Vislumbrando  a polêmica “Netflix versus cinema”, que chegaria com a estreia do deslumbrante Roma – e pensando em viabilizar prêmios no Oscar -, a plataforma de streaming se adiantou e tomou uma decisão inesperada: de acordo com o jornal El País, a empresa irá distribuir o filme em alguns cinemas pelo mundo semanas antes de seu lançamento no catálogo. O mesmo deve acontecer com próximos lançamentos, como é o caso do filme Caixa de Pássaros.

A matéria destaca que “este movimento supõe uma notável mudança para a Netflix, cujo modelo sempre foi dar prioridade aos seus assinantes e ao consumo doméstico de produtos audiovisuais”. Em entrevista à agência EFE,  Alfonso Cuarón chegou a falar sobre distribuição. “Ver Roma na tela grande é tão importante quanto assegurar que as pessoas de todo o mundo tenham a oportunidade assistir ao filme em suas casas”, afirmou o diretor.

Independente de sua posição, um conselho é certo: escolha a tela que esteja de acordo com as suas possibilidades e não deixe de prestigiar esse belíssimo filme.

Assista ao trailer: 

(Fonte: Netflix Brasil/ YouTube)

*Roma deve estrear na Netflix  em dezembro deste ano.

** Este texto faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Leia também: O Anjo, indicado pela Argentina ao Oscar 2019.

Ficha técnica

Direção: Alfonso Cuarón

Duração: 2h15

País: México, EUA

Ano: 2018

Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira

Gênero: Drama

Distribuição: Netflix

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